BORA REZAR

Neste espaço se entrelaçam poesia e mística. Por meio de orações de mestres espirituais de diferentes religiões, mergulhamos no Mistério que é a absoluta transcendência e a absoluta proximidade. Este serviço é uma iniciativa feita em parceria com o Prof. Dr. Faustino Teixeira, teólogo, professor e pesquisador do PPG em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG.




Nos braços nus da vida
E foi novamente como se a Vida,
com todos os seus segredos,
estivesse próxima de mim,
como seu eu a pudesse tocar.

Tive a sensação de estar a repousar
no seio desnudado da vida
e de lhe ouvir o suave bater do coração.

Jazia nos braços nus da Vida
e ali me sentia imensamente segura e protegida.
E pensei: ´como isto é estranho.

Há a guerra. Há campos de concentração.
Pequenas crueldades amontoam-se
em cima de pequenas crueldades.

Quando caminho pelas ruas,
sei que, em muitas casas por onde passo,
há ali um filho que está preso,
e ali o pai está refém,
e ali têm de suportar a condenação
à morte de um filho de dezoito anos`.
E estas ruas e casas ficam perto
da minha própria casa. (...).

Sei de tudo isso e continuo a enfrentar
cada pedaço de realidade que se me impõe.

E no entanto - num momento inesperado,
abandonada à mim própria -
encontro-me de repente
encostada ao peito nu da Vida
e os braços dela são muito macios
e envolvem-me de modo muito protetor,
e nem sequer consigo descrever
o bater do coração: tão lento e regular
e tão suave, quase abafado,
mas tão fiel, como se nunca mais findasse,
e também tão bondoso e compassivo.

Este é pois, o meu sentimento da vida,
e creio que não há nenhuma guerra
ou crueldade humana gratuita
que o possam modificar.


Fonte: Etty Hillesum. Diário. 3 ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, 187-188


Etty Hillesum | Foto: Wikimedia Commons
Etty Esther Hillesum (1914 – 1943): Jovem holandesa de família judaica, mística, foi voluntária no campo de concentração de Westerbork, quando começou a escrever seu diário, em 1941. Durante os dois anos em que esteve nos campos de concentração, até sua morte em Auschwitz, Etty expressava em seu diário suas angústias e seu encontro com Deus, demonstrando uma experiência espiritual, relatando seu testemunho e compartilhando a dor dos horrores do Holocausto. Teve a oportunidade de salvar a si própria, mas decidiu compartilhar o destino do seu povo.

Comentários

  1. Achei lindo esse trecho do Diário de Etty. Só mesmo uma pessoa que encontrou verdadeiramente a Deus conseguiria amar a vida com tanta intensidade, diante de tamanha adversidade. E ela transmite esse sentimento de amor com uma serenidade impressionante. Apesar de toda a sua desgraça, não julga, não condena, não amaldiçoa ninguém, pelo contrário, parece demonstrar amor por todos. Uma alma rara.

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