DEIXAR-SE AFETAR

Parecia que Jesus estava fora de si...

É assim que Marcos nos fala da surpresa que os parentes de Jesus tiveram ao vê-lo como pregador e seguido por tanta gente que tentam imobiliza-lo pelo fato de pensarem que esteja fora de si.

Essa cena do Evangelho me fez lembrar uma coisa que sempre ouvimos das pessoas quando, depois de algum tempo que não nos veem, dizem que estamos diferentes. Nem sei se o que dizem é pelo fato de estarmos melhores ou piores, mas esse diferente é como se fosse uma espécie de saudade daquele antigo tempo em que nos conhecia e estávamos por perto.

Sinceramente não acho que alguém consiga permanecer sempre igual.

A vida tem esse poder de nos modelar à medida em que os acontecimentos, situações, novas realidades, pessoas diferentes que encontramos, lugares vão nos "madurando". Impossível viver um dia sem se deixar tocar por tudo ao redor e sentir-se mudado por esses elementos.

Uma vez quando atendia num Presídio, conversando com alguns dos que participavam da reunião, e a pergunta era TIRANDO A FAMÍLIA E POSSÍVEIS AMIGOS, O QUE MAIS SENTEM FALTA AQUI DENTRO a resposta de um velho preso me surpreendeu. Disse ele: SINTO FALTA DAS COISAS QUE ME AFETAVAM ENQUANTO A VIDA PASSAVA...

Parece enigmático né? Mas faz todo sentido: enquanto se vai ao trabalho com o ônibus lotado quanto de afetação não nos atinge? Alguém que está com um perfume forte, uma pessoa que conversa com outra em alta voz, alguém que mexe no celular e canta junto com a música que ouve, a paisagem na janela, o sol que brilha no rosto, as inúmeras vezes que o ônibus para afim de que desçam ou subam passageiros, um vendedor ambulante que vende biscoitos, um acidente na avenida, uma freada brusca, uma manifestação na rua, um buraco que dá um solavanco, etc...

Nada disso acontece ao meu redor sem me afetar e, se o contrário acontecer, é porque alguma coisa está errada comigo que não estou vivendo o momento presente...

Agora imaginem um tempo onde as viagens eram raras e as dificuldades para se sair de um lugar eram imensas e Jesus vai, faz a experiência de conhecer pessoas e lugares diferentes, o quanto que isso o tenha afetado...

Imaginem as família que o esperava "igual" àquele que havia saído e pensava que voltaria a fazer e falar coisas que todos já estavam acostumados e de repente descobrem que ele tem um novo código de pensamento, uma nova maneira de expressar-se e principalmente, novas ideias que pareceriam absurdas num lugar onde a vida seguia o fluxo do acordar, trabalhar, comer e dormir...

Não é à toa que tentam detê-lo pensando estar fora de si.

O que ainda não entendiam e nem conseguiam apreender a dimensão do significado que tinha a sua missão. Pensavam-no como um pregador nos moldes judaicos e com vontade apenas de ser um servidor da sinagoga e de Deus.

De repente, vem Ele com um discurso que recupera toda a tradição profética e atualiza os conteúdos. Imaginem o susto ao observarem que uma multidão estava se interessando por essas ideias. E imaginem os medos que esses parentes tiveram de serem responsabilizados pelos fariseus de terem dado ao mundo um rebelde...

Marcos ao nos fazer pensar sobre isso nos pede para que tenhamos abertura.

Abertura com esse amadurecimento que Jesus faz e que as pessoas ao seu redor são convidadas a fazer.

Abertura para entender que a missão parte de elementos concretos que se constroem em contato e no conhecimento sobre como Deus se manifesta na história.

Abertura para não querer que tudo fique sempre igual apenas para nos agradar.

Abertura para não impedir que os outros cresçam e nem se conformar com o que conseguiu na própria vida.

Abertura para deixar que a vida os toque e não fiquemos presos achando que estamos livres...

Fiquem bem.